É verão na Holanda! E a cidade de Haia preparou um extenso programa de atividades, festivais e exposições ao ar livre. Eu mostrei em um vídeo a Exposição Wild Wonders of Europe (cê já assinou o canal do Ducs Amsterdam no Youtube?), mas há mais o que ver. Até dia 27 de agosto de 2010 rola uma exposição ao ar livre de esculturas de areia com o tema "Ode aos Mestres Holandeses" (Ode aan de Hollandse Meesters): uma área de 25 por 8 metros abriga esculturas de 8 metros de altura representando quadros de mestres holandeses.
Um time internacional formado por escultores da Rússia, Ucrânia, Holanda, Reino Unido e República Tcheca escolheram quadros e obras de mestres holandeses pra dar vida em três dimensões usando areia e talento. Se você estiver passando por Haia (Den Haag para os íntimos), dê um pulo, especialmente se estiver sol, no Buitenhof, onde estão as esculturas. Não custa nada (mesmo! É grátis e dá pra ir a pé da Centraal — é uma caminhadinha, mas o caminho é bonito!) e é bem legal de ver.
Mas será que as esculturas ainda estarão lá? Como pode durar meses uma escultura de areia? E a chuva? E o vento?
Como são feitas as esculturas e o efeito do clima
Você pode ficar curioso de saber como as esculturas resistem ao clima. Eu dei uma pesquisada e descobri que é assim: primeiro a areia que eles usam é especial, não é areia de praia. A areia especial é mais fina e se compacta muito mais. Pra fazer esculturas grandes assim, primeiro eles armam uns moldes de madeira, pra empilhar a areia alto. Depois de empilhada, eles molham, na verdade, encharcam a areia. Daí eles compactam, compactam, compactam. E compactam. Quando ela fica bem pesada, eles retiram o molde e passam a esculpir usando uma série de instrumentos.
Veja uma foto dos artistas criando a escultura do Escher, tirada do Flickr de uma pessoa que não conheço.
Tá, mas e o clima? Sem problemas: como a areia é extremamente compactada, ela resiste bem ao vento e apenas uma chuva muito forte pode danificar a escultura. Se quiser que a escultura dure realmente muito — teve uma na Califórnia que resistiu dois anos — é possível borrifar uma camada fina de cola dissolvida em água. Mas isso é mais pra preservar os detalhes. No geral é apenas areia e água.
Claro, como aqui é a Holanda, e realmente chove muito, teve uma das esculturas, a representação do quadro Zoals de ouden zongen, zo piepen de jongen de Jan Steen, que sofreu um pequeno dano. E já há alguma perda de detalhes em outras.
As obras
Uma das coisas legais do tema escolhido é que você pode aprender um tiquinho mais sobre arte dos mestres holandeses. Basta se perguntar: "Mas que quadro está representado aqui?" Inclusive, os originais de alguns deles estão ali pertinho, na Mauritshuis, um dos meus museus favoritos na Holanda. Como achei legal aprender sobre arte usando esculturas de areia, resolvi responder a pergunta e contar quais os quadros e artistas que foram homenageados ao mesmo tempo que mostro a versão tridimensional em areia. Curtiu? Vamos lá então!
Zoals de ouden zongen, zo piepen de jongen de Jan Steen
Jan Steen viveu no século XVII na Holanda, a Idade de Ouro da Holanda. Gostava de pintar cenas domésticas, mas não meramente reproduzi-las. Suas obras sempre mostravam um comentário bem humorado e insights sobre a sociedade da época. O quadro do mestre escolhido pra ser reproduzido em 3D na areia é o Zoals de ouden zongen, zo piepen de jongen ("Enquanto cantam os velhos, fumam os jovens", um ditado da época. O título original em holandês antigo é "‘Soo voer gesongen, soo na gepepen"). Ela está cheia de coisas acontecendo, contém uma mensagem moral evidente e se você quiser vê-la melhor de perto, ande uns 800 metros até a Mauritshuis. Aproveite e veja se acha o próprio Jan Steen representado na tela. (Solução: ele é o cara dando risada e dando o cachimbo pro menino fumar, à direita e atrás. Sentiu o drama, né?)
Nome: Zoals de ouden zongen, zo piepen de jongen
Autor: Jan Steen
Ano: 1665 (cerca)
Técnica: óleo sobre tela
Tamanho: 134 x 163 cm
Local: Mauritshuis, Haia, Holanda
Melkmeisje de Johannes Vermeer
Vermeer acontece de ser um dos meus artistas holandeses prediletos. Muito pouco é conhecido de sua vida, e sua obra não é extensa. Morou e provavelmente nasceu em Delft também no século XVII. Um dos grandes mestres da pintura, tinha um talento inigualável pra retratar a luz. Usava poucas cores nos seus quadros, mas fazia miséria com elas. Morreu cedo, com 43 anos, deixando 11 filhos por criar, sobreviventes dos 14 que a esposa dele deu à luz. Pessoas maldosas poderiam dizer que ele pintou pouco porque tava muito ocupado fazendo filho, mas evitarei (ops, já foi). Enfim, a esposa era católica, e católicos naquela época levavam a sério o lance de não evitar filho.
Hoje tem um certo status de popstar das artes, mas ficou obscuro por um par de séculos. Sua obra mais famosa é A garota do brinco de pérola (adivinha se essa não tá na Mauritshuis também), mas a Melkmeisje não fica muito atrás. (A Leiteira é a tradução oficial, mas prefiro traduzir ao pé da letra: "A garota do Leite". Leiteira pra mim é o caneco de ferver leite.) E foi essa a pintura do mestre que foi parar nas areias de Haia. Inspirador, copiado e parodiado, a obra prima está no Rijksmuseum em Amsterdam e, apesar da escultura ter ficado muito legal, você tem de ver ao vivo pra apreciar o que o cara fez com a iluminação no quadro.
Ah, Vermeer detona. Eu confesso que me emocionei de verdade com o seu quadro da "Visão de Delft". É... não tenho palavras. Vá ver.
Nome: Melkmeisje
Autor: Johannes Vermeer
Ano: 1657–1658, mas há controvérsias
Técnica: óleo sobre tela
Tamanho: 45,5 × 41 cm
Local: Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda
Zelfportret als de apostel Paulus de Rembrandt
Suponho que eu não precise apresentar Rembrandt à vocês. Certamente o mais famoso dos artistas com obras representadas no Ode aan de Hollandse Meesters e um dos mais famosos pintores holandeses de todos os tempos, mesmo quem não curte muito arte ouviu falar. Eu, no caso, curto muito arte e Rembrandt. Os quadros dele eram populares com ele ainda em vida, embora ele tenha se afundado em dívidas, perdido a casa e no fim da vida tenha ficado meio esquecido. Ao longo de sua carreira pintou dezenas e dezenas de auto-retratos. Tantos (foram mais de 80) que pudemos acompanhar seu envelhecimento, vendo como era o artista com vinte e poucos anos até perto dos 63, quando morreu. Se ele viajasse no tempo e viesse parar no século XXI, seria certamente reconhecido na rua.
Com essa popularidade, imagino que escolher um auto-retrato na obra de Rembrandt pra esculpir tenha sido natural. O escolhido foi o Zelfportret als de apostel Paulus, feito quando ele tinha 55 anos de idade, com ele posando pra si mesmo como o Apóstolo Paulo. O quadro está em exposição no Rijksmuseum e é, pra variar, uma obra prima.
Nome: Zelfportret als de apostel Paulus
Autor: Rembrandt van Rijn
Ano: 1661
Técnica: óleo sobre tela
Tamanho: 91 x 77 cm
Local: Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda
De Luitspeler de Frans Hals
E mais um pintor do século XVII — não chamaram de Idade de Ouro a toa, né? Frans Hals nasceu em Antuérpia (hoje é na Bélgica, que não existia na época. Ela se separou dos Países Baixos no século XIX), mas viveu desde uns quatro anos de idade no Haarlem. Confesso que não conhecia o artista antes de vir morar na Holanda e ver suas obras. É famoso pelos seus retratos no estilo barroco, com uma pincelada bem solta.
A escultura que homenageia Hals é, logicamente, de um retrato que ele pintou: De luitspeler ("O tocador de alaúde" é minha tradução. Sim, tive de olhar "luit" no dicionário) que está no Louvre. Como se já não tivesse o que ver no Louvre...
Nome: De luitspeler
Autor: Frans Hals
Ano: 1624-1625
Técnica: óleo sobre madeira
Tamanho: 62 x 71 cm
Local: Musée du Louvre. Paris, França
Waterval e Wentelteefje de Maurits Cornelius Escher
Enquanto uns retratavam a nobreza, outros a vida cotidiana ou outros temas, M. C. Escher resolveu retratar o infinito. Tanto quanto é possível trazer o inimaginável pra dentro das mentes humanas, ele obteve grande sucesso. Suas obras são fontes de horas e horas e horas de inspiração e diversão para, bem, todos, mas exerce especial atração sobre nerds. Não é difícil de calcular, portanto, que é um grande favorito aqui da casa dos Ducs.
As gravuras de Escher já são piração suficiente em duas dimensões, e o pessoal da Zandacademie, a responsável pela execução do projeto, fez um trabalho fantástico em 3D.
Acho que eles se divertiram esculpindo Escher mesmo, porque escolheram 2 obras do artista, com referência a outras. A primeira é Waterval (Queda dágua), a famosa peça onde a água parece estar subindo e desafiando a gravidade.
A outra chama-se Wentelteefje, e retrata aqueles bichinhos se enrolando sobre si mesmos. Segundo minhas pesquisas, Wentelteefje quer dizer "rabanada". É, o doce feito de pão. É muito popular entre as crianças aqui. Wentel quer dizer "girar, revolver" e teefje quer dizer, bem, "cadelinha". Agora divirta-se desenrolando esse trocadilho.
E por último, uma referência aos répteis que aparecem em muitas obras de Escher, como a Kleiner en kleiner e Reptielen. Se você curte Escher, ou quer descobrir mais sobre ele, tá com sorte: o Escher in het Paleis, o museu do Escher, fica ali ao lado, na Lange Voorhout 74. São apenas 750 metros. Veja o caminho no Google Maps. Lá tem impressões de praticamente todas as gravuras de Escher.
Nome: Waterval
Autor: Maurits Cornelius Escher
Ano: 1961
Técnica: litografia
Tamanho: 38 x 30 cm
Nome: Wentelteefje
Autor: Maurits Cornelius Escher
Ano: 1951
Técnica: litografia
Tamanho: 17 x 23,5cm
Tuin der lusten de Jheronimus (ou Hiëronymus) Bosch
Se a obra do Escher é pirada, a de Bosch também é (mas de um jeito diferente). Jheronimus Bosch é outro pintor misterioso. Não se sabe praticamente nada da sua vida. Mesmo o ano de seu nascimento é desconhecido, e estimado baseado num retrato de autoria desconhecida (seria um auto-retrato? Ninguém sabe). Olhando o retrato, estimaram a idade de Bosch pela sua aparência e, sabendo a data em que ele foi feito, estimaram o ano de nascimento: essa conta doida deu como resultado "cerca de 1450". Sabe-se a data de sua morte porque está nos registros da "Ilustre Irmandade de Nossa Senhora" de Den Bosch (a cidade holandesa onde viveu e tirou seu nome artístico).
A obra máxima de Bosch é justamente a que foi esculpida na areia: Tuin der lusten (Jardim das delícias terrenas). É um tríptico, ou seja, o quadro é dividio em três partes separadas: uma central e duas laterais que podem se fechar sobre o centro. O painel da lateral esquerda mostra Deus apresentando Eva para Adão, o centro mostra o famoso Jardim das Delícias e o painel da direita mostra o inferno e a danação eterna. E a danação eterna é bizarra.
Meus pais tinham uma reprodução desse quadro. Não na parede, mas em algum livro ou álbum. Eu cresci no meio dos livros, e lembro de ter topado com a parte da danação eterna do Tuin der lusten e da profunda, imensa impressão que ele me causou. Na real eu tinha um belo medo infantil do quadro — não é absurdo supor que era justamente a intenção do autor, sendo que ele foi muito bem sucedido. Comigo, ao menos, foi.
Agora, se você acha que a tal Danação é inapropriada pra menores, espera só você dar uma espiadinha nas tais delícias terrenas propriamente ditas, o painel do centro. É uma suruba de proporções bíblicas. A pegação come (ops de novo) solta em meio a animais bizarros e de tamanhos diversos. Se você tá muito curioso, tem uma reprodução em alta resolução na Wikipedia. Veja em tamanho grande (clicando na figura depois de terminar carregar).
Pra escultura, eles pegaram as partes mais... hã... menos... enfim, eles pegaram leve nas partes que escolheram pra reproduzir na areia.
Nome: Tuin der lusten
Autor: Jheronimus (ou Hiëronymus) Bosch
Ano: 1490 ~ 1510
Técnica: Tríptico feito em óleo sobre madeira
Tamanho: 220 cm × 389 cm
Local: Museo del Prado, Madri, Espanha
De stier de Paulus Potter
A pintura de Paulus Potter, De stier (O touro), feita em 1647, causou um certo rebuliço na época: é enorme, de dimensões épicas, de um tamanho tradicionalmente reservado para temas mais nobres do que um touro e seu fazendeiro. E o touro tá lá, com bilau e tudo, e ainda o artista cometeu a indignidade de colocar um cocozão dele em primeiro plano (não reproduzido na escultura de areia...)
Ela está também na Mauritshuis.
Nome: De stier
Autor: Paulus Potter
Ano: 1647
Técnica: Óleo sobre tela
Tamanho: 225 x 340 cm
Local: Mauritshuis, Haia, Holanda
De koppelaarster de Dirck van Baburen
E pra encerrar, um quadro de Dirck van Baburen. A tela pertenceu à sogra do Vermeer, e o pintor a incluiu em dois de seus próprios quadros, criando uma arte dentro da arte. De koppelaarster quer dizer "a alcoviteira", e Vermeer pintou um quadro com mesmo tema e nome.
Nome: De koppelaarster
Autor: Dirck van Baburen
Ano: 1622
Técnica: Óleo sobre tela
Tamanho: 101,5 x 107,6 cm
Local: Museum of fine arts, Boston, Estados Unidos
Por enquanto é só
Era isso. Espero que vocês tenham curtido esse passeio e a introdução mega rápida à algumas obras famosas dos mestres holandeses. Achei que seria uma maneira original de falar um pouco sobre arte holandesa, e acho que era essa mesma a proposta do projeto. Eu sou grande fã do assunto e, se você também é, conte aí nos comentários quem são seus pintores holandeses favoritos, quem você descobriu de maneira inesperada, qual obra você viu ao vivo e se emocionou...
E, se você quiser ver mais fotos, tem um set no Flickr só pras esculturas.
O artigo Esculturas de areia em Haia – 2010 foi retirado de Ducs Amsterdam.